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IAC: um possível aliado do Poder Judiciário na prevenção e no tratamento da judicialização...




Dentre os institutos que geram “precedentes vinculantes” no CPC/15, certamente, o Incidente de Assunção de Competência – IAC é o que, até o presente momento, recebeu menos atenção doutrinária e também jurisprudencial. O número de obras ou até mesmo artigos que se dedicam a explorá-lo é muitíssimo menor do a que produção doutrinária destinada ao estudo de seus congêneres como o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDRou dos Recursos Especial e Extraordinário Repetitivos - RRs. Seu menor prestígio também se comprova a partir dos dados do Banco Nacional de Demandas Repetitivas e Precedentes Obrigatórios, disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ.


Possivelmente, a principal justificativa para essa preterição seja o fato de que os institutos que integram a espécie dos repetitivos (IRDR e RRs – art. 928 do CPC/15) foram disciplinados pelo CPC/2015 como peças chaves do combate à litigância massificada, que assola o Poder Judiciário. Capazes de gerar solução única e vinculante para milhares de processos idênticos, esses institutos, fatalmente, conquistaram a atenção e o fascínio da comunidade jurídica.


Em outro extremo, ou seja, dissociado da preocupação com a solução de processos massificados, encontra-se o IAC. Destinado à uniformização de relevantes questões de direito, o IAC tem como pressuposto, justamente, a não repetição em múltiplos processos (art. 947, caput do CPC/15). Para a admissibilidade do IAC, sobreleva o requisito qualitativo e não o quantitativo.


Pois bem. Se, em circunstâncias normais, a sobrecarga do Judiciário já era uma patologia que preocupava nosso ordenamento, o arrombo da pandemia mundial em função da COVID-19, anuncia que estamos às vésperas de um período de agravamento de nossas mazelas.


As profundas mudanças ocasionadas nas relações sociais, econômicas, jurídicas, somadas às incertezas do que está por vir, bem como à inflação legislativa já vivenciada nesse período inicial da crise, descortina uma iminente corrida em massa ao Judiciário.

E uma avalanche de novas ações, desafiando temas inéditos e de impacto social, a desaguar num Judiciário assoberbado, que ordinariamente já convive com doses imoderadas de divergência jurisprudencial, prenuncia sérios prejuízos à segurança jurídica, à isonomia, à efetividade e à própria confiabilidade do sistema.


Esse cenário nos convida a refletir acerca das técnicas processuais que dispomos para a gestão de processos judiciais, impondo-nos extrair o máximo grau de rendimento de nossos institutos, visando a tratar o fenômeno que estamos prestes a enfrentar.

Mais do que nunca, voltar os olhos e reavaliar o potencial de utilidade do IAC mostra-se necessário.

Tanto os Recursos Especiais e Extraordinário Repetitivos (RRs), o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), como o Incidente de Assunção de Competência (IAC), visam à produção de precedente vinculante que expresse a correta interpretação a respeito de uma determinada questão de direito. Porém, os dois primeiros (RRs e IRDR) o fazem para solucionar processos massificados, ou seja, demandas em que se discute a mesma questão de direito. Já o último (IAC), tendo como pressuposto, justamente, a não repetição em múltiplos processos, volta-se à formação de precedente a respeito de relevantes questões de direito.


A razão de ser desse instituto traz consigo a ideia de que, ao “dizer o direito”, o Judiciário sinaliza para a sociedade aquilo que está e aquilo que não está de acordo com o ordenamento. Ou seja: prescreve pautas de condutas para os jurisdicionados. Quando em face de temas significativos para a sociedade, é conveniente que a resposta do Judiciário seja pronunciada em lócus de quórum qualificado, que propicie a ampliação do debate e a reflexão madura a respeito.


Quer dizer: tão ou mais relevante que a necessidade de uniformização de temas repetitivos, revela-se a uniformização de relevantes questões de direito. Especialmente nessas situações, o Direito há que oferecer previsibilidade aos jurisdicionados.

O IAC fecha o sistema de precedentes vinculantes do CPC/15, imprimindo estabilidade e integridade no trato de matérias importantes para a sociedade e para o direito, mas que não podem ser objeto de repetitivos porque não se repetem em série.

Apesar de não ser, a redação do art. 947 do CPC/15, das mais claras, parece plausível admitir duas possibilidades diferentes de instauração do IAC: uma prevista no caput do art. 947 e outraprevista no parágrafo 4º. 1


A hipótese prevista no caput exige a presença de relevante questão de direito, com grande repercussão social.


Segundo Luiz Guilherme Marinoni, “Questão de direito com grande repercussão social é aquela que, além de não ter relevo apenas para a solução do caso sob julgamento, tem valor para a sociedade. Na verdade, quando se fala em questão com grande repercussão social não se quer apontar para algo que diz respeito à sua relevância técnico-processual, que atingiria outros casos repetitivos ou casos respeitantes a direitos coletivos ou difusos. Alude-se a uma questão de direito com grande repercussão social para evidenciar o seu excepcional relevo em face da vida social nas perspectivas política, religiosa, cultural e econômica. 2 3

 

1 Art. 947. É admissível a assunção de competência quando o julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo de competência originária envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos. § 1º Ocorrendo a hipótese de assunção de competência, o relator proporá, de ofício ou a requerimento da parte, do Ministério Público ou da Defensoria Pública, que seja o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária julgado pelo órgão colegiado que o regimento indicar. § 2º O órgão colegiado julgará o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária se reconhecer interesse público na assunção de competência. § 3º O acórdão proferido em assunção de competência vinculará todos os juízes e órgãos fracionários, exceto se houver revisão de tese. § 4º Aplica-se o disposto neste artigo quando ocorrer relevante questão de direito a respeito da qual seja conveniente a prevenção ou a composição de divergência entre câmaras ou turmas do tribunal. 2 MARINONI, Luiz Guilherme. Sobre o incidente de assunção de competência. Revista de Processo, v. 41, n. 260, out. 2016, p. 235. 3 Tentando contribuir para essa definição, o Enunciado 469 do FPPC preceitua que “A ‘grande repercussão social’, pressuposto para a instauração do incidente de assunção de competência, abrange, dentre outras, repercussão jurídica, econômica ou política”.

 

Já na hipótese do parágrafo 4º, o que se exige é a presença de relevante questão de direito, somada à conveniência de se compor ou prevenir divergências internas entre os órgãos fracionários do tribunal. Trata-se, portanto, instrumento uniformizador de caráter preventivo, destinado a tratar divergências ainda não propagadas em escala. Desuniformidades concretas e já proliferadas no âmbito de um tribunal devem ser corrigidas por métodos próprios – quais sejam: o IRDR e os RRs.


Ambas as hipóteses de cabimento, a nosso ver, tem requisitos comuns - quais sejam: i.pendência de recurso, de remessa necessária ou de processo de competência originária do tribunal; ii. relevante questão de direito; iii. a inexistência de repetição de processos múltiplos; e iv. reconhecimento, pelo órgão colegiado competente, do interesse público na assunção de competência. A elas, devem ser somados os requisitos específicos previstos para cada hipótese de cabimento, conforme ilustra a esquematização abaixo:

A exigência quanto à “pendência de recurso, de remessa necessária ou de processo de competência originária” exclui a possibilidade de instauração do IAC para definição, em abstrato, de uma questão de direito controvertida. Por sua vez, a exigência da relevante questão de direito exclui a possibilidade de uniformização a respeito de questões fáticas. Optou, o legislador, por prestigiar a uniformização de questões em que se firmarão teses jurídicas. O requisito da não repetição em múltiplos processos é de suma importância, pois é o que distingue o IAC do IRDR, no âmbito dos tribunais de segundo grau, bem como do RRs, no âmbito das cortes superiores. 4 Ao se ignorar isso, corre-se o risco de se ter a sobreposição desses institutos – que são complementares e não equivalentes. Quanto ao último requisito, qual seja, o reconhecimento, pelo órgão colegiado competente, do interesse público, parece-nos algo muito semelhante à verificação da grande repercussão social, porém feita pelo colegiado competente para processar o IAC.

Como já se destacou, são enormes os impactos que a crise mundial instaurada pela pandemia de COVID-19 já acarretou e ainda muito acarretará em todas as relações entre indivíduos, empresas, organizações e países.  Atualmente, vive-se um cenário de grande instabilidade. No Brasil, apenas os primeiros dias de vigência de medidas governamentais visando ao isolamento social da população já acarretam incalculáveis prejuízos aos negócios e, o que era muito previsível, um aumento substancial do ajuizamento de demandas no Judiciário. Cada litigante, à sua maneira, pretende salvaguardar seus interesses ou mesmo promover aquilo que reputa ser a melhor resposta para a crise. Só perante o Supremo Tribunal Federal – STF, entre os dias 12 de março e 02 de abril de 2020, foram ajuizadas 44 (quarenta e quatro) ações apenas de controle concentrado de constitucionalidade, impugnando, sob os mais diversos enfoques, normas recentemente editadas pelo governo para combater a crise.  Se, no STF, o número de novas ações já assusta, seguramente, pode-se afirmar que o cenário perante as instâncias a quo já aponta para o caos.

 

4 Fórum Permanente de Processualistas Civis: “Enunciado 334. (art. 947). Por força da expressão ‘sem repetição em múltiplos processos’ não cabe o incidente de assunção de competência quando couber julgamento de casos repetitivos”.

 

Diariamente, demandas de altíssimo impacto social estão sendo ajuizadas nas mais diversas cercanias de nosso Judiciário - formado por 14.877 unidades judiciárias, 90 tribunais, onde atuam mais de 18 mil magistrados, segundo o relatório “Justiça em Números - 2019”, do CNJ. Não é preciso qualquer esforço para se prever que essa pulverização ocasionará não só a prolação de decisões divergentes sobre temas idênticos, como de decisões irrefletidas sobre temas de impacto coletivo, criando novos e ainda mais graves problemas. Tome-se como exemplo a questão de direito analisada, recentemente, pelo Juiz de Direito da 5ª Vara Federal de Fortaleza, na Tutela Cautelar Antecipada ajuizada contra a ANVISA, pretendendo a obtenção de autorização para que o Estado do Ceará implante uma barreira sanitária e de inspeção de passageiros de todos voos nacionais, notadamente vindos de Estados que tenham declarado estado de calamidade pública ou medida correlata. A liminar pretendida foi deferida e, atualmente, há prazo para recurso. A decisão, inegavelmente, é emblemática. O caso é sui generis e versa relevante questão de direito, com evidente repercussão social. Provavelmente, não há, no Judiciário, outras centenas de casos idênticos a ele.  Mesmo assim, a partir da prolação dessa decisão, certamente se terá um paradigma para a solução de casos posteriores. Parece-nos que a questão de direito analisada nessa Tutela Cautelar Antecipada, quando/se submetida ao reexame do Tribunal, poderia (ou, até, deveria) ser decidida no bojo de um incidente especial, vocacionado a formar um precedente importante para a sociedade. 5 Isso garantiria sua análise por um quórum mais qualificado que o ordinário, permitiria a participação/oitiva de pessoas ou entes capazes de contribuir para o debate e, principalmente: ao final, resultaria num precedente de natureza vinculante. O entendimento nele adotado deverá ser aplicado a casos idênticos e em casos semelhantes, 6 sob pena de ensejar reclamação (art. 988, IV do CPC).

 

5 Como bem destaca Fábio Victor da Fonte Monnerat, “A finalidade desse deslocamento de competência é qualificar o procedente a ser forjado ao final do incidente, a começar pela representatividade do órgão que o formou” MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. Súmulas e precedentes qualificados: técnicas de formação e aplicação. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 156. 6 Como destaca Neil MacCormick, um dos principais benefícios do uso dos precedentes é a “economia de esforços”, já que tanto magistrados quanto advogados não necessitariam realizar novos esforços argumentativos sobre o mesmo tema. Uma questão resolvida uma vez deverá ser tratada como solucionada de uma vez por todas, ressalvados os casos que se demonstre ter surgido algo que exija a reconsideração. MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito: Uma teoria da argumentação jurídica.

Tradução: Conrado Hubner Mendes e Marcos Paulo Veríssimo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 191. 7 TIMM, Luciano Benetti; TRINDADE; Manoel Gustavo Neubarth. As recentes alterações legislativas sobre os recursos aos tribunais superiores: a repercussão geral e os processos repetitivos sob a ótica da law and economics. Revista de Processo; vol. 178/2009; p. 153 – 179; Dez / 2009. 8 ALVIM, Teresa Arruda; DANTAS, Bruno. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a nova função dos Tribunais Superiores no direito brasileiro: precedentes no direito brasileiro. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 273.

 

E aí reside a primeira das quatro principais razões que se quer destacar neste breve artigo, para fomentar a utilização do IAC pelo Judiciário. Com efeito, a uniformidade jurisprudencial desestimula a judicialização irrefletida. Antes de decidir pelo ajuizamento de uma demanda ou mesmo pela interposição ou não de um recurso, os litigantes (ou pretensos litigantes) sopesam a expectativa de ganho frente aos custos e riscos envolvidos. Em um cenário que não permite às partes uma visão clara a respeito de sua chance de êxito, prolifera-se o ajuizamento de ações temerárias. Se as partes já costumam ser bastante otimistas em relação aos seus direitos 7 a existência de um “cardápio jurisprudencial variado” fomenta o apetite para litigar.

A segunda razão que pretendemos destacar diz respeito à segurança transmitida aos jurisdicionados, a partir da uniformização de temas de especial impacto. Como apontam Teresa Arruda Alvim e Bruno Dantas, a admissão de diferentes pronunciamentos sobre questões idênticas ou semelhantes equivale à existência de duas normas diferentes disciplinando a mesma situação. 8 A incerteza que daí deriva compromete a própria integridade do Direito.

A terceira razão que pretendemos salientar refere-se ao ganho de agilidade que a operação com precedentes vinculantes proporciona. Assim, por exemplo, o art. 332 do CPC permite o julgamento liminar de improcedência dos pedidos que contrariarem acórdão proferido em Incidente de Assunção de Competência, desde que a causa verse questão exclusivamente de direito. Semelhantemente, o art. 496, §4º, III, do CPC, dispensa da remessa necessária a sentença que estiver fundada em entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência. No âmbito recursal, os arts. 932, IV, “c”, e 955, § único, II, do CPC/15, preveem que incumbe ao relator negar provimento ao recurso que for contrário a entendimento firmado em Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas ou de Assunção de Competência; bem como julgar, de plano, o conflito de competência quando sua decisão se fundar em tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em Incidente de Assunção de Competência.

Finalmente, a última – e, talvez, mais importante razão – pela qual o estímulo do uso do IAC se justifica agora refere-se ao fato de que esse parece ser o ambiente processual mais conveniente para a solução das novas e complexas questões de direito, de relevância social, que vêm se proliferando nos últimos dias. 9 Por certo que, de início, os juízes serão chamados a decidir, monocraticamente, esses temas. O IAC, como já se destacou, só pode ser suscitado na pendência de recurso, remessa necessária ou ação de competência originária – portando, no bojo de processo possivelmente já examinado por um primeiro magistrado. Porém, parece-nos que os esforços devem ser empreendidos no sentido de, tão logo possível, submeter as relevantes questões de direito ao julgamento por meio do IAC, para que, num ambiente processual adequado e perante órgão de quórum qualificado, com espaço para ampliação do debate, seja-lhes fixada a melhor interpretação, naquele específico cenário histórico-social.

 

9 Com precisão, Evaristo Aragão Santos destaca que: “É utópico (para dizer o menos) pensarmos que qualquer pessoa, individualmente considerada, reúna as condições técnicas e humanas suficientes para decidir, sozinha e pela primeira vez, questão que afetará interesses bem além dos limites dos autos e, muito provavelmente, até da compreensão que a soma das suas experiências pessoais pode lhe proporcionar. SANTOS, Evaristo Aragão. Sobre a importância e os riscos que hoje corre a criatividade jurisprudencial, Revista de Processo, v. 35, n. 181, p. 38-58, mar. 2010 e-book.



Daniela Peretti D´Ávila

Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP.

Advogada do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.


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