Chuva de poesia
- aalvim
- há 12 minutos
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Li esses dias que um coletivo de artistas chilenos, chamado grupo Casagrande, lançou, no mês passado, um “bombardeio de poemas” em Rotterdam, na Holanda. O evento ocorreu no dia 14 de maio, exatamente 85 anos depois de os nazistas terem destruído, com suas bombas, todo o centro histórico da cidade, deixando centenas de mortos e milhares de desabrigados.
A Holanda rendeu-se às forças nazistas nesse mesmo dia, após uma invasão que durou apenas 5 dias. A iniciativa do grupo de artistas despejou sobre a cidade cem mil marcadores de livros, com cem poemas diversos, para marcar a data triste com uma mensagem de esperança na capacidade humana de superar desafios com criatividade e sensibilidade.
Em 11 de setembro de 2001, os rapazes e moças desse grupo iniciaram sua jornada de chuvas poéticas, lançando versos sobre o Palácio de La Moneda, lembrando a data do golpe militar contra o governo eleito do presidente Salvador Allende. Desde então repetiram o feito nas cidades de Madri, Guernica, Londres e Dubrovnik. O princípio do grupo é o seguinte: o que fazer diante da barbárie?
Poesia neles!
Na minha adolescência, líamos e admirávamos os poetas. Na vila onde eu morava, havia um rapaz mais velho que vivia sentado na varanda de sua casa, sempre com um livro na mão e um cigarrinho de palha na boca. Quando passávamos diante de sua casa - nosso grupo de moleques barulhentos a caminho do campinho para bater bola - aquietávamos diante da sua presença e depois comentávamos em voz baixa: ele é poeta.
Aos quinze anos ganhei uma máquina de escrever de meu pai, uma pequena Olivetti verde esmeralda e nela cometi meus primeiros versos que mostrava- de noite, sob a luz do poste na esquina de casa, - aos meus amigos. Em 1980, aos 16 anos, ganhei meu primeiro e único concurso de poesia, no colégio militar de Fortaleza. Meus versos foram publicados na revista da escola e, por causa deles, fui convidado para ser o vice diretor do jornal do grêmio general Osório. Foi meu auge na carreira artística, encerrada pouco depois, por absoluta falta de talento e consciência de que gostar de poesia não faz de ninguém um bom poeta. Mas já é alguma coisa.
Nos anos 70 e início dos anos 80 líamos os poetas nordestinos e ouvíamos os poetas mineiros: Fausto Nilo, Ferreira Gullar, João Cabral, Torquato Neto, Lô Borges, Cácaso, Fernando Brant. Depois descobrimos Ana Cristina Cesar, Cecília Meireles, Moacyr Félix, Chacal, Waly Salomão, Affonso Romano, Chico Alvim, entre outros. Meus preferidos, livros de cabeceira, parceiros nas minhas idas para a escola eram Dentro da Noite Veloz e Que país é este? Deste último, lembro, de memória, versos soltos: Uma coisa é um país, outra um fingimento. Uma coisa é um país, outra um monumento. Uma coisa é um país, outra o aviltamento.
Quando vim para Curitiba, a poesia ficou no caminho. Quase tudo virou prosa. Conheci os textos dse Kafka e o cinema de Wajda. Endureci com o frio da cidade. Mesmo assim, meu primeiro contato com a menina que seria minha primeira namorada na cidade foi com um verso. Escrevi-o em um quadro negro que ficava nos fundos da sala de aula na
qual estudávamos : o verso trazia seu nome e um epíteto: "você é um pássaro azul.”
Não que eu tenha perdido por completo meu interesse por poesia mas é que , como disse Belchior, veio o tempo negro e, à força, fez comigo, o mal que a força sempre faz: morar sozinho, vender o almoço para pagar o jantar, estudar, trabalhar, tentar entender o que estava acontecendo. Assim, e meu dia a dia- e o do mundo - acabou ficando muito parecido com os versos do Torquato Neto, Literato Cantabile:
Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início;
agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam assim,
do precipício:
a guerra acabou
quem perdeu agradeça
a quem ganhou.
Acontecimento curioso: enquanto escrevo essa crônica, a rádio que toca no meu computador entoa Cajuína, na linda voz de Caetano Veloso. Veloso compôs essa música pouco depois de visitar o pai de Torquato Neto para expressar seus sentimentos pelo suicídio do poeta, em 1972. O senhor, que cuidava da roseira quando o artista chegou, ofereceu-lhe a bebida amarelo âmbar e consolou o choro convulsivo de Caetano.
Existirmos a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina
Para terminar, uma dica: o escritor, poeta, ilustrador e cineasta português Afonso Cruz lançou, em 2020, um delicioso livrinho chamado Dieta da poesia, pela editora Dublinense. Nele, o autor sugere:
Quando sentir vontade de emborcar uma travessa de batatas fritas, em vez disso, abra o livro e leia um poema. Sempre que se sentir tentado a comer alguma coisa entre as refeições, especialmente comida processada, hidratos de carbono, gordura trans ou nutrientes brancos, não coma, pegue no livro e leia. Os resultados são impressionantes. Leia, pela sua saúde.
Assino embaixo.
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