Recreio
- aalvim
- 1 de out.
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Em uma entrevista nos anos oitenta, o poeta Ferreira Gullar contou como se tornou poeta. Segundo ele , foi por causa de uma professora de português que, certa vez, na sua distante adolescência, como aluno de um Instituto Técnico em São Luís do Maranhão, deu-lhe uma nota 95 em uma de suas composições. “Era sobre o dia do Trabalho, recordo-me. Eu resolvi escrever sobre a solidão as máquinas, das lojas, dos locais de trabalho naquele dia. Assim, virei o tema pelo avesso e , ao invés de fazer o elogio do trabalhador, falei sobre o silêncio daquele dia”.
Gullar disse que professora dirigiu-se a ele e comentou: “só não lhe dei um 100 porque há no seu texto alguns erros de português”.
Ferreira Gullar contou para a repórter que naquele momento decidiu o que queria fazer da vida. Como aparentemente era bom em escrever - afinal, recebera 95 na redação - e não parecia, até aquele momento, que não era bom em mais nada na vida, seguiu então aquele caminho para ver no que ia dar. Porém, havia um obstáculo: ele cometera muitos erros de português. Então, disse Gullar, resolveu estudar gramática e, durante os três anos seguintes, foi o que fez da vida. Passou desde as gramáticas básicas e chegou nos complexos problemas de filologia e nas diversas correntes de interpretações semânticas da língua portuguesa. Afiou o seu instrumento de trabalho com paciência e dedicação.
O resto, a gente já sabe. Gullar é, sem dúvida, um dos maiores poetas da língua portuguesa , tendo percorrido os diversos estilos , do repente ao poema concreto , incluindo nessa trajetória também as letras de músicas populares, como a conhecida versão que ele fez para o cantor Fagner, Borbulhas de Amor. Dele, há um fragmento de que gosto muito, no poema As peras, onde ele diz assim:
Era preciso que
o canto não cessasse
nunca. Não pelo
canto (canto que os
homens ouvem) mas
porque cantando
o galo
é sem morte.
O passado é mesmo uma coisa imprevisível. Quando ouvi essa matéria do poeta, em um vídeo de internet, desses que passam diante de nossos olhos quando, quase mecanicamente, vamos deslizando os dedos sobre a tela buscando preencher aqueles momentos vazios do tédio ou da procrastinação, lembrei-me de uma passagem da minha adolescência que há muito havia soterrado, junto com tantos outros momentos já vividos, no porão das coisas olvidadas e que nunca contara ( até agora) para ninguém.
Eu estudava no Colégio Militar de Fortaleza e amava ler e escrever. Mas era muito tímido, de uma timidez doentia, daquelas que fazem as mãos suarem e as pernas tremerem diante da simples hipótese de uma exposição pública. Mas minha mente fervilhava de ideias na forma de poemas, contos, crônicas, romances epistolares, repentes, com sextilhas rigorosas e perfeitas ou sonetos shakesperianos, cujas traduções eu lia na imensa biblioteca do colégio, igualmente imenso, com seus prédios e ruas e praças e até mesmo um mini jardim zoológico onde às vezes eu ia dar de comer aos macaquinhos que se empoleiravam nos galhos dos cajueiros. Pois um dia, na aula de português do professor Emerenciano ( não há como esquecer um professor com um nome desses), um civil atarracado, de uns cinquenta e tantos anos, com cabelo escuro como piche e um bigode da mesma cor - o que despertava nossas dúvidas sobre a sua originalidade - quando ele estava entregando as redações da semana, chamando monocordicamente nossos nomes de guerra - Martinez, Silva, Marins, Soares… - eu, para variar, já começava a molhar as palmas das mãos pelo simples fato que meu nome seria chamado e eu teria de me levantar para buscar a folha com o texto que eu havia cometido, sobre não me lembro o quê. Uma pena eu não lembrar sobre o que eu escrevera. Mas recordo-me que eu e meu amigo Martins - que depois tornou-se professor de Letras da Universidade de Sobral - estudávamos dicionários e brincávamos de adivinhar as palavras difíceis que um dizia para o outro. E depois usávamos essas palavras nas nossas redações.
O fato é que os nomes acabaram e o meu não fora chamado. E agora, o que fazer? Perguntar? Mas ter de ir lá na frente para isso? Não havia jeito, eu precisava saber. Levantei-me e aproximei-me da mesa do professor e, com um fio de voz, disse-lhe: o senhor não chamou o meu nome. E qual é o seu nome? Hortêncio, senhor. Ah, exclamou ele. Hortêncio! Procure-me no recreio, na sala dos professores, para conversarmos.
Voltei para a minha carteira estarrecido, sob o olhar curioso dos meus colegas. Mas não houve tempo para qualquer comentário, porque o sisudo professor já começara a sua lição sobre algum ponto da gramática.
No recreio, eu e meu amigo Nogueira fomos em direção à sala dos professores, que ficava em um dos prédios da escola, sombreada por enormes Flamboyants. A questão , porém, era a seguinte: onde estava a coragem para entrar naquele ninho de professores, alguns vestindo suas fardas militares - majores, coronéis - e atrapalhar seu precioso tempo de café e conversa fiada, para perguntar pelo professor Emerenciano?
Rodamos, rodamos, olhamos enviesados pela porta adentro, mas não tive coragem de perguntar. O sinal tocou e voltamos para a sala.
Nunca soube o que o professor queria dizer-me. Seria um elogio, um estímulo, como o que recebera Gullar e transformou-lhe a vida? Seria, ao contrário, um puxão de orelha que o professor quis poupar-me de receber na frente de meus colegas, a respeito de minhas palavras esdrúxulas, obviamente deslocadas em meio ao resto do texto simplório e cheio de erros?
Nunca soube. Segui a vida e , aos poucos, fui me desfazendo das veleidades literárias, embarcando na vida dos textos informativos, dos livros didáticos e, no máximo, das colunas de opinião nos jornais generosos que às vezes me publicam.
O que o professor Emerenciano queria me dizer da redação cujo conteúdo o tempo levou?
Como disse o poeta: Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!




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