Cringe
- aalvim
- 3 de set.
- 3 min de leitura
Ouvi esses dias a palavra cringe e aprendi que se trata de uma discussão de jovens de 15 anos em relação a jovens de 25 anos e que o objeto do debate são as condutas praticadas pelos “mais velhos” e consideradas pelos primeiros como “vergonhosas”. Os segundos se defendem afirmando que seus gostos são marcas identitárias e que sentem muito orgulho delas. Aprendi também que as redes sociais bombaram por causa desse confronto durante cerca de… três dias. No momento em que escrevo sobre isso, o tema já não é relevante, como, de resto, parece que nunca foi.
Eu no entanto, embarco com gosto no episódio e ponho-me a matutar: vivo já passado dos sessenta anos, vejo-me como um terreno com várias camadas geológicas superpostas, sem que pertença, como unidade, a nenhuma delas. Vi, certa vez, esse recorte em uma pedra de milhões de anos e um amigo geólogo explicou-me de que fase era cada uma delas. Vi as inúmeras camadas e vi a pedra. Chamei de pedra.
Esse é o ponto do meu ensimesmamento. Não sou mais a criança do final dos anos sessenta, que ainda tem na memória o eco do pai gritando feito louco depois do gol do Clodoaldo contra o Uruguai. Mas também sou esta criança. Não sou mais o adolescente que vibrou com o gol do Kempes, depois do bate-rebate com o goleiro e com os zagueiros da Holanda, e com o delírio dos argentinos, cobrindo o estádio com papeizinhos picados, tremendo tudo ao redor. Mas também sou este adolescente ( ah, como é bom!). Não sou mais o jovem professor que dava aula na escola particular enquanto na rua de trás o carro de som chamava os estudantes para não irem às ruas e pintarem os rostos e tirarem o presidente corrupto do poder. Mas…bom, creio que meu ponto de vista já está demonstrado.
Incorporo, como um cavalo de várias entidades espíritas, muitos tempos e muitas marcas dos tempos em mim, sem que eu deixe nunca de ser eu mesmo, inteiro, como já estava inteiro o mesmo menino que ganhou um time de botão para brincar na varanda com os amigos e, desde então, nunca deixou de torcer pelo time cujas carinhas estampavam as pequenas rodas brancas feitas de osso por um artesão habilidoso cujo nome gostaria de ter sabido para agradecer e compartir as alegrias de minhas vitórias e os choramingos das minhas muitas derrotas futebolísticas.
Na verdade, tudo isso me parece evidente e essa história de cringe soa para mim quase como um apelo, um pedido de ajuda dessa meninada, como se a falta de atenção e, principalmente, a falta de memórias das experiências não vividas ou não percebidas criasse uma sombra em torno da própria pessoa e impedisse que ela se reconhecesse, não fosse pelo gesto repetido pelos outros, a roupa usada pelos outros, a frase dita pelos outros, a música ouvida pelos outros em torno dos quais ela cria/inventa uma identidade pra chamar de sua e pra se proteger das perguntas incômodas sobre suas experiências pessoais. Por isso também essa atitude de repulsa pelos gestos, roupas, frases e músicas dos outros que não são os outros dele, da idade dele, da paisagem em torno dele. Trata-se de um esforço de manutenção do espectro de identidade tão precária, tão fraquinha e que pode, a qualquer momento, ser soprada pelo riso estranho e misterioso de alguém satisfeito com a própria vida.
Vi esses dias o lindo documentário do Paulinho da Viola, dirigido pela Izabel Jaguaribe: “meu tempo é hoje”. Como ele, eu não tenho um tempo, não sou de um tempo, não respondo por tempo nenhum. Por mim, viveria ainda muitos tempos, porque acho bacana essas nuances todas e se não uso todas elas, não é por reprovação, mas por desmazelo com certos lugares da vida, certos cômodos e certas praças que visito pouco, mas não sem me recriminar por essa sovinice com a minha própria possibilidade e alegria de estar no mundo.
Quem me falou do cringe foi uma amiga somente uns poucos anos mais nova do que eu. Ela estava indignada e proferiu palavras não muito republicanas para os jovens que , pelo que entendi, achincalharam as performances musicais e artísticas da Sandy e do Júnior. “Como se hoje existisse coisa melhor”, reclamou, exaltada.
Achei graça. E lembrei, de novo, do Paulinho da Viola: Eu sou assim/Quem quiser gostar de mim/Eu sou assim…
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