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Cinema e Literatura

  • aalvim
  • 1 de abr.
  • 5 min de leitura

Atualizado: há 4 dias


Como sabemos, a literatura tem sido, ao longo desse pouco mais de um século de cinema, uma fonte inesgotável de matéria prima para filmes. Por isso, nessa nossa primeira crônica, vou falar sobre os livros que viraram filmes e sobre filmes que conseguiram ficar melhores que os livros. 

Três filmes que ficaram muito melhores que os livros: o carteiro e o poeta; as sandálias do pescador e, é lógico, tubarão. Quanto a este último, o livro não poderia inserir a trilha sonora que foi a alma desse primeiro sucesso de Spielberg. Também a genial sacada de não mostrar o protagonista antes da primeira hora do filme, invertendo a maior vantagem do cinema em relação ao livro: a dispensa do uso da imaginação. O resultado é que, pra quem assiste ao filme e lê o livro, o primeiro empata no quesito “imagine por si mesmo” e ganha na trilha sonora, absolutamente impactante.

As sandálias do pescador, do escritor australiano Morris West, conta a história de um religioso que fora vítima da violência da URSS, tendo amargado anos em um campo de concentração na Sibéria, vê-se inesperadamente eleito papa, enquanto seu torturador torna-se o homem forte do governo soviético. Aliás, o livro, publicado em 1963, antecipa, em parte, a grande surpresa da eleição do polonês Karol Wojtyla, em 1978. O livro, porém, perde-se em tramas paralelas e em flashbacks da vida do religioso, enquanto o filme , de 1968, com Anthony Quinn no papel do papa, é intenso e dinâmico, prendendo nossa atenção do começo ao fim. Igualmente, a trilha sonora, de Alex North ( o mesmo músico responsável pela trilha de filmes icônicos como Um bonde chamado desejo e Spartacus) faz a diferença.

A maior diferença entre um livro ( apenas razoável) e um filme ( espetacular) ocorre com O carteiro e o Poeta. No livro, do escritor chileno Antonio Skármeta, publicado em 1985, Mario Jiménez é um jovem desempregado que consegue o cargo do correio para levar a correspondência para o poeta Pablo Neruda, que vivia na Isla Negra. Lá, entabula conversas com o velho poeta e político comunista e Neruda o ajuda a conquistar a bela Beatriz por quem jovem estava apaixonado. Tudo se passa em meio a ascensão de Pinochet ao poder, que tanto no livro quanto no filme, tem um papel secundário na trama. No filme, dirigido por Michael Radford, o cenário se transfere para uma ilha italiana onde Neruda encontrava-se exilado e Mário não é mais um jovencito, mas um homem maduro , filho de pescadores , que não suportava o trabalho dos barcos porque não queria repetir o destino do pai e, dono de uma bicicleta, busca emprego no correio e torna-se o responsável por levar a correspondência para Neruda. Esse foi o último papel do grande ator Massimo Troisi, que já estava muito doente e faleceu pouco depois do término das filmagens. Inclusive, as cenas nas quais ele aparecia conduzindo a bicicleta foram feitas por dublês, face ao seu estado de saúde debilitado. Massimo Troisi interpreta o pobre e ingênuo Mário com uma intensidade e uma beleza incomuns. Diferente do livro, que é breve e ligeiro, o filme torna a relação entre o poeta e o filho de pescador densa e profunda. Há também graça na parte do filme que conta a conquista de Beatriz, particularmente a oposição da mãe da moça, que vai ao padre denunciar que o carteiro estava seduzindo sua filha com metáforas. Imperdível.

No último Oscar, alguns filmes derivaram de livros e dois se destacaram muito. O Conclave, que faz uma homenagem ao livro do britânico Robert Harris, mantendo praticamente inalterada a trama por ele desenvolvida, e o nosso Ainda estou Aqui, do Marcelo Rubens Paiva. Nesse caso, o trabalho do diretor Walter Salles amplia a experiência relatada pelo escritor e aproxima a história de todos, esmaecendo o conteúdo estritamente político, para revelar, por trás da tragédia da ditadura, a história universal da dor da perda que afetou toda a família e que exigiu a coragem e a resiliência da mãe, Eunice, para sobreviver à dificuldade de conseguir criar os cinco filhos e, igualmente, recriar-se, formando-se em Direito e tornando-se uma das mais importantes defensoras das causas indígenas do país. Sem ter acesso aos bens da família, já que o Estado não admitia a morte do ex-deputado Rubens Paiva, Eunice contou com apoio dos pais, dos filhos mais velhos e de si mesma para manter todos em pé, sem desmoronar. “Sorriam”, diz ela em um momento marcante do filme. 

Agora me vem à lembrança outro filme que é muito melhor do que o livro: Zona de Interesse. O livro, do escritor inglês Martin Amis, é lento e enfadonho, e a mensagem que ele busca passar, de como os nazistas encaravam a tarefa do extermínio dos judeus burocraticamente , em um dos melhores exemplos do conceito de “banalidade do mal” da pensadora alemã Hannah Arendt, perde-se um pouco, pelo menos para o leitor comum. Diferente da excelente obra “O Leitor”, do escritor e jurista alemão Bernhard Schlink, que é melhor do que o filme, e olha que o filme, dirigido por Stephen Daldry e estrelado por Kate Winslet, que ganhou o Oscar pelo papel, também é muito bom. Mas Schlink consegue manter, ao longo da história, as pontas soltas necessárias para instigar os leitores e, depois, quando o segredo da personagem Hanna Schmitz é revelado, ele consegue algo que parece impensável: sentirmos pena da vilã. Um mérito único dessa excelente obra.

Mas voltando ao filme Zona de Interesse. A direção de Jonathan Glazer utiliza o enquadramento das cenas para forçar o espectador a prestar atenção aos movimentos da casa onde vive o chefe do campo de Auschwitz e sua família, ora a parte externa, ora o movimento dos criados no interior da casa, enquanto os sons do campo de concentração, antes quase inaudíveis, vão aumentando até tornarem-se uma presença inescapável. Apesar disso, a trama e os “dramas" do casal ignoram o que se passa ao lado, mesmo sendo claro que não ignoravam realmente, mas simplesmente não pensavam, não consideravam o que ocorria no campo de concentração como algo que lhes dissesse respeito. Ao fim do filme fica claro o quanto deixamos escapar o mal por nossos dedos toda a vez que não prestamos atenção. Ou seja, o mal não é profundo ou peculiar, mas banal, como um líquen, sem raízes, e que cresce em qualquer lugar. Inclusive ao nosso redor.

Bom, esse texto acabou ficando bem extenso e, como desejo que vocês , se puderem, assistam e leiam as minhas sugestões, vou parar por aqui. Mas voltarei a esse tema outras vezes, está bem? 


Um abraço

Daniel Medeiros

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